Uma vida de lutas - Renée France de Carvalho
Vera Rocha Dauster
Ler o livro da Renée France de Carvalho é embarcar em uma emocionante viagem internacionalista e atravessar importantes momentos da história ocidental do século XX, como a Guerra Civil Espanhola, a Resistência Francesa ao nazismo e a luta do povo brasileiro contra as desigualdades e a favor da democracia, em diversas épocas históricas.
E Renée nos conduz nessa viagem com a força e a propriedade de protagonista, de personagem ativa dos fatos que descreve, o que nos emociona e nos enche de orgulho, pela forma com que ela contribuiu para esse Brasil democrático que nós temos hoje.
Uma obra que nos torna, ao mesmo tempo, passageiros e aprendizes, pois Renée nos ensina muitas lições, impossíveis de se descrever sem a carga emocional que escorre junto com a tinta no papel.
Destacaria, aqui, a demonstração de que os povos oprimidos não têm fronteiras, assim como demostraram as Brigadas Internacionais, onde o seu companheiro, Apolônio de Carvalho se integrou para ir lutar na Espanha, entre tantas lutas desse herói dos povos de três países.
Mas, ao mesmo tempo, Renée nos mostra que esses mesmos povos têm suas pátrias e seus direitos a defender dos tiranos de ocasião, como os resistentes o fizeram na II Guerra Mundial e como tantos outros povos do mundo o fazem ainda no presente.
A nossa combatente franco-brasileira executou tarefas heróicas no combate ao nazismo, a exemplo do transporte de armas, explosivos e dinheiro, tornando possíveis as ações dos FTPs - Franc Tirreurs Partisans e a vitória da resistência francesa.
Renée também narra fatos curiosos, como a colaboração de “muitos artistas e jornalistas franceses com o nazismo” e até prosaicos e divertidos, como a ojeriza de um dirigente do PCB pelo alho na comida que ela cozinhava na Escola de Quadros do Partido.
A Renée, que foi “soldado sem uniforme e ganhou a patente de Tenente das Forças Francesas do Interior”, conviveu com uma esquerda brasileira, que ainda desconhecia o verdadeiro papel da mulher nas fileiras dos partidos e tinha práticas discriminatórias.
Com disciplina e resignação, mas também com agudo espírito crítico, a autora ainda é o exemplo de uma batalhadora incansável das lutas do povo brasileiro, uma mãe dedicada aos seus dois filhos, René e Raul, que também lutaram contra a ditadura e conheceram as prisões nos anos de chumbo, e a eterna companheira desse grande homem que foi Apolônio de Carvalho.
Apolônio, que escreveu suas memórias no livro Vale a Pena Sonhar, também nos revela suas batalhas durante uma vida de lutas. Cada um com seu olhar, pois Renée tece a história a partir da visão da mulher, mas, juntos, os dois livros compõem um todo, como a linda história afetiva desse casal com o qual convivi, aprendi a admirar e a amar, no exílio.
Cabe a nós, hoje, esta homenagem mais do que justa à Renée de Carvalho, uma militante coerente, que foi capaz de arriscar a própria vida em nome das lutas sociais nas quais esteve engajada.
O livro de Renée Uma Vida de Lutas, que também poderia se chamar Uma Vida de Lições, é leitura obrigatória e deveria ser adotado como livro didático no Curso de História das escolas públicas, para que as lições que ele nos ensina jamais sejam esquecidas.
Sejam bem-vindos a bordo para uma viagem de muitas partidas e muitas chegadas, na qual o destino é traçado de acordo com as incertezas dos acontecimentos e a convicção dos nossos ideais.
*Publicitária
Duas vidas: uma luta
Antonio Albino Canelas Rubim *
Em comum, os dois livros impressionam pela densidade das vidas e das lutas retratadas, que perpassam momentos fundamentais da história do século XX no mundo e no Brasil. A Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a Ditadura Militar de 1964, a luta e o retorno da democracia no país são alguns dos instantes intensamente vivenciados por Apolônio e Renée como atores que buscaram sempre e ativamente interferir na vida política e social mundial e brasileira.
Os livros são igualmente impressionantes pela admirável coerência das duas trajetórias de vida inteiramente dedicadas às lutas contra a exploração e a opressão e pela construção de outra e melhor sociedade. Apesar dos impasses, derrotas e vitórias, ilusões e desilusões, Renée e Apolônio não desistiram de pensar e agir por outro mundo.
Apolônio e Renée se conheceram em setembro de 1942 na luta da Resistência Francesa contra o invasor nazista e os franceses de Vicky, em verdade um estado fantoche mantido pela Alemanha nazista em parte da França. Nascida em 1925, na cidade de Marselha, Renée antes dos 18 anos já havia aderido à luta da Resistência Francesa. Desde então, ela e Apolônio se tornam companheiros de vida e de luta na França, no Brasil e no mundo.
Os livros revivem estes anos vertiginosos, de brutais conflitos, mas também de imensas alternativas de projetos político-culturais para a vida social. Renée e Apolônio, em suas vidas heróicas, viveram plenamente estes desafios e dilemas. Suas memórias revelam as possibilidades, tristezas e alegrias contidas nestes anos essenciais.
Em verdade, os livros se completam e se complementam como Renée e Apolônio. Eles não se repetem e nunca são redundantes. Uma mesma luta, mas vista de lugares e por olhares bem distintos. Apolônio é o homem militante, generoso e sensível. Renée é a mulher militante, que sem abandonar sua militância, tem que cuidar de seus dois filhos, René e Raul, também militantes políticos de esquerda.
O perspicaz olhar de Renée permite uma visão singular de todo este tenso e complexo processo: da vida clandestina do partido comunista, ilegal no período dito democrático (anos da Guerra Fria), e no momento tenebroso da Ditadura Militar; das prisões de Apolônio e dos filhos no pós-64; das longas ausências de Apolônio devido a missões atribuídas a ele pelo partido que desconsiderava inúmeras vezes as necessidades da vida familiar, sempre subordinadas à inquestionável disciplina partidária. Enfim, ela tece delicadamente outro modo de ver as lutas em uma perspectiva sensivelmente feminina.
Esta singular leitura feminina do período ganha vida, pois ela é exercida com vigor e rigor. O próprio Apolônio em seu livro aponta como qualidades de sua companheira: o “espírito aberto, de agudo senso crítico e não raro cáustico”. Ele sublinha como tais atitudes o influenciaram na superação de dogmas e de equívocos. Tem toda razão Lula quando escreve no prefácio ao livro: “A vida de Renée é uma empolgante história de coragem. Muito mais que isso: é a história de outra mulher vencedora”.
*Secretário de Cultura do Estado da Bahia.
Renée de Carvalho relembra histórias de uma geração disposta a morrer por ideais
Felipe Prestes
O som das sirenes dos navios invadia Marselha. Eram sons de mobilização popular. A cidade portuária estava em greve e os navios, parados. Aquela atmosfera fascinava a menina Renée, de onze anos. “Em 1936, aconteceu uma coisa diferente: os operários ocupando as usinas, as fábricas, as lojas. Marselha era naquela época um grande porto. Todos os navios estavam paralisados. Seis horas da tarde, não lembro muito bem, todas as sirenes dos navios tocavam juntas. Este som invadia a cidade. Esta greve, para mim que era muito jovem naquele tempo, tinha um sentido assim… as pessoas mudavam seus sentimentos”.
Renée France de Carvalho viveu a resistência aos nazistas, a clandestinidade no Brasil pós-Estado Novo, a resistência à ditadura militar, o exílio, a abertura política e a fundação do PT. “Uma Vida de Lutas”, como assinala o título da autobiografia a qual a militante de 87 anos veio lançar em Porto Alegrena última semana, ocasião em que conversou com o Sul21, ao lado do filho mais velho, René-Louis.
É o primogênito quem ressalta que apesar de tantas vivências da mãe, o que mais a marcou foi mesmo o período de agitação entre as duas grandes guerras, quando era uma criança que assistia a breve ascensão da Frente Popular na França e a grandes greves. “Uma vez perguntei para a Renée o momento que mais a marcou. Pensei que ela ia falar 1945 (ano da derrota do fascismo), mas ela disse 1936, quando viu a subida da Frente Popular. Uma das primeiras medidas deles foi dar férias pagas aos trabalhadores”, conta.
Renée complementa: “Antes disto, quem não trabalhava, não recebia. Você sabe o que é, por exemplo, ver na sexta-feira o pessoal sair porque tinha o sábado assegurado? Então, iam à praia, iam fazer coisas do interesse deles. Era muito comovente. Foi um período curto, mas muito alegre. Pessoas que moravam a 40 quilômetros da praia e nunca tinham visto o mar. As primeiras férias eram uma festa. Era uma coisa que enchia de alegria”, diz.
A militante faz questão de contextualizar o período em que se tornou comunista ainda quando criança. Fala da quebra da Bolsa de Nova Iorque, da ascensão de Adolf Hitler na Alemanha, da ascensão de frentes de esquerda na Espanha e na França, do povo começando a lutar por direitos. “Comunistas e socialistas, que estavam sempre brigando entre si, resolveram se unir. Houve comícios, eleições, grandes greves. Minha família também foi sensibilizada para estas lutas. Meu pai entrou para o Partido Comunista e procurou trazer toda a família para o movimento popular. Neste ambiente familiar era muito difícil não ser entusiasmado pelo que acontecia”, conta.
Uma família formada na resistência e na clandestinidade
A cada pergunta sobre um fato do passado, Renée sorri, olha para o filho, parece insegura em confundir tanta coisa que vive, mas logo vem uma resposta longa, relatando tudo o contexto histórico que permeava. Pergunto sobre como conheceu o marido da vida toda, Apolônio de Carvalho. “É uma história complicada”, diz, sorrindo, para depois contar boa parte da trajetória política do marido até conhecê-la.
A prisão pelo Governo de Vargas, em 1936, por participar da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e a expulsão das Forças Armadas. A liberdade em 1937 e a viagem, em seguida, para a Espanha, para atuar nas Brigadas Internacionais contra os fascistas Guerra Civil Espanhola. Com a derrota republicana, a ida a um campo de concentração na França. “A França tinha acordo para receber os refugiados, tanto a população espanhola, quanto os brigadistas. Eram ‘campos de acolhimento’, mas na verdade eram campos de concentração. O Apolônio ficou quase dois anos e depois resolveu fugir. Ele foi para Marselha, não sei bem se com a intenção de voltar para o Brasil. Mas ele se integrou à resistência francesa, fez parte da Força Francesa da Mão-de-Obra Emigrada. Eu também estava na Resistência. Nos conhecemos em reuniões. Eu tinha muitos amigos emigrados, sobretudo judeus, porque a repressão a judeus começou a se alastrar na França. Nos conhecemos através destes amigos”, conta.
Pergunto por que decidiram deixar a França e rumar para o Brasil em 1947. Mãe e filho riem e René-Louis, que havia nascido na França, em 1944, explica: “Eles não resolveram. Foi uma intimação”. Renée confirma: “O PCB chamava o Apolônio de volta”. No Brasil, viveram apenas alguns meses como Apolônio, Renée, René-Louis e Raul, segundo filho do casal, recém-nascido. Os nomes deles tinham que mudar regularmente, bem como o endereço. “Poucos meses depois da nossa chegada, houve o julgamento do PCB, que foi declarado ilegal. Então o partido foi para a clandestinidade e Apolônio, eu e os dois meninos fomos para a clandestinidade. A gente morava seis meses em cada lugar”, conta Renée.
René-Louis conta que achou durante vários anos que seu nome era Luis Never dos Santos. Só ficou sabendo seu nome verdadeiro na década de 1950, quando Renée e Apolônio vão para a União Soviética e ele e Raul ficam com familiares na França, que lhes tratam pelo nome real. Apesar da infância confusa, René diz que não teve traumas. “Para a gente era um pouco lúdico. A gente trocava de nome toda vez que mudava de endereço e não podia esquecer o novo nome, não podia trocar por um nome antigo. Havia uma solidariedade interna muito grande na família e a gente acompanhou sem maiores traumas”, conta.
Durante o Governo JK, na segunda metade da década de1950, a repressão era menor e a clandestinidade da família era relativa. A situação voltou a se complicar após o golpe militar. “Para nós, a clandestinidade recomeçou no dia 1º de abril. O Apolônio desapareceu de circulação”, conta Renée, que ficou com os filhos. “Precisávamos comer”, conta sorrindo. “Eles estavam estudando. René estava terminando a universidade. Raul já tinha começado”. Para sustentar a família, Renée trabalhou durante 14 anos em uma representação diplomática da Hungria no Brasil (o país do Leste Europeu não podia ter embaixada por aqui naqueles tempos de Guerra Fria).
Luta armada, exílio e fundação do PT
Apolônio e os dois filhos integraram durante a ditadura militar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), formada por dissidentes do PCB que apoiavam a luta armada. Renée era contra ações armadas naquele momento, por avaliar que não havia condições de prosperar. “Achava que não havia condições, porque os militares tinham conseguido neutralizar o movimento estudantil, liquidar o movimento sindical. Não havia qualquer possibilidade de luta armada. Esta divergência não gerava brigas entre nós, porque éramos muito unidos, mas fortes discussões”, conta.
Em 1970, Apolônio e os dois filhos do casal são presos. Apolônio e René-Louis são incluídos em diferentes listas de presos “trocados” por embaixadores e rumam para o exílio. Raul cumpre pena de três anos e, depois, vai com a mãe para a França, onde se reúne toda a família. Renée trabalha em uma biblioteca e com traduções, enquanto Apolônio se dedica às ações de solidariedade a exilados das ditaduras da América do Sul. “Para mim foi um exílio no meu próprio país. Havia passado muito tempo, muita coisa havia mudado. Foi muito difícil para mim”, conta Renée.
Às vésperas da Anistia, ela volta ao Brasil para visitar Raul, que já estava morando de novo no país. Raul estava morandoem São Pauloe a leva para conhecer a agitação política do ABC Paulista. “Quando voltei para a França, não pensava que a Anistia viria tão depressa, mas a fundação de um novo partido já estava na ordem do dia”.
Com a Anistia, ela e Apolônio voltam ao Brasil e começam a participar das discussões para a criação de um partido de massas. Renée conta que ela e o marido estranharam a criação de um partido que congregava pessoas com linhas ideológicas diversas, sem uma ideologia definida. “Este novo partido nos parecia sem muita ideologia. Apolônio estava bem reticente no início. Vivemos a vida toda com uma ideologia. Mas ele veio, se integrou em todas as discussões. Nós queríamos a revolução, o socialismo e o PT não tinha este pensamento. Fiquei com a seguinte tese: o PT talvez não tivesse ideologia, mas tinha massa. A gente viveu a vida toda querendo ter um partido que tivesse ideologia, mas que tivesse massa também. Este movimento que viria a ser o PT tinha massa. Não tinha ideologia, mas tinha muita discussão, porque havia inúmeros movimentos de esquerda se integrando”.
Hoje, Renée continua acreditando na busca pelo socialismo, mas não crê que as coisas possam mudar da noite para o dia. “A gente continua tendo esta visão de uma sociedade mais justa e igualitária, com socialismo. Mas a gente vê que não pode ser amanhã, que a gente precisa lutar e ter uma visão um pouquinho mais realista”, diz. Ela vê com bons olhos os governos Lula e Dilma, mas gostaria que as coisas andassem mais rápido. “Sempre sou um pouco apressada. Embora tenha visto que o socialismo não pode ser para amanhã, gostaria que as coisas fossem andando mais rápido. Por outro lado, a gente não pode negar que a sociedade está mudando. Fala-se muito desta nova classe média, o nível de vida subindo. As condições de vida melhoraram. O Lula já fez muita coisa”, avalia.
“Existia uma solidariedade que parece não existir mais”
Pergunto qual a recompensa da vida de privações, como exílio, clandestinidade, resistência. Renée entende que no século XX vários gerações nunca buscaram recompensa, mas estavam dispostas a morrer por seus ideais. “Recompensa não há, nem intenção de ter recompensa. Fomos gerações de pessoas criadas neste espírito de conquistar um mundo melhor para o povo. Nesta época, existia uma solidariedade que parece não existir mais. As pessoas tinham um objetivo e viviam e morriam se fosse o caso. Não é grandiloqüência, estou dizendo como foi mesmo”.
Apesar da comparação com os dias de hoje, vê que a juventude está começando a ir para as ruas. “As pessoas já estão inconformadas, vão para a rua, meio timidamente ainda, mas vão. E os jovens, esses jovens que a gente sempre julgava sem ideologia, não sei bem qual é a ideologia, mas começam a demonstrar que estão inconformados”.
Renée conta que nunca quis escrever memórias. Foi a historiadora Marly de Almeida Gomes Vianna que fez entrevista com ela para um trabalho acadêmico e depois sugeriu que virasse livro. “Quando ela propôs fazer um livro, eu não estava de acordo. Nunca pretendi escrever memórias, nem dar conselhos. Hesitei muito. O livro é sem procurar valorizar minha atuação, que foi assim muito sincera, mas modesta. Não sou uma pessoa que teve uma atuação tão importante. Meu marido já tinha escrito uma autobiografia e para mim já era o suficiente”.
René-Louis parece ter insistido para que a mãe aceitasse a ideia. “A gente achava que há muitas memórias sobre a época, mas faltavam dois componentes: o olhar de mulher sobre este período e a possibilidade de fazer críticas”. Renée concorda com o filho. Acredita que as muitas biografias sobre revolucionários do século XX pouco analisam criticamente a atuação dos partidos de esquerda e procurou fazer isto no livro que está lançando.
“Dei esta entrevista, dizendo o que eu pensava. Criticando e fazendo uma autocrítica. Participamos de partidos de esquerda. Acho que chegou o momento de fazer a crítica destes partidos: mostrar o que eles tinham de bom, de militantes que davam a vida por uma mudança, uma revolução socialista, que era o que nós queríamos, mas foi mais de uma geração que também foi por este caminho e que perdeu sua forma independente de pensar, a vontade de criticar”, diz. Ela ressalta que não se trata de crítica às pessoas, nem arrependimento de qualquer coisa que tenha feito. “Não vale só criticar pessoas. Estas pessoas deram sua vida, poderiam ter feito outra coisa, mas ficaram militando a vida toda”.
Fotos: Bernardo Jardim Ribeiro
Do site Sul21
Vale a pena sonhar, Apolônio, por Luiz Inácio Lula da Silva*
Na próxima semana, Porto Alegre será palco das homenagens aos cem anos de Apolônio de Carvalho. As atividades, promovidas pela Fundação Perseu Abramo e pelo PT/RS, incluem a exibição do documentário e a exposição de fotos sobre a vida ímpar desse militante. Homenagear Apolônio é muito mais do que lembrar de um companheiro e amigo querido. Neste caso, a memória transcende a afinidade pessoal e a amizade se torna um dever. Dever de reiterar valores e caminhos que ele defendeu e seguiu muitas vezes com o risco da própria vida.
Ele nasceu em Corumbá, no dia 9 de fevereiro de 1912. Filho de um sergipano com uma gaúcha, seguiu a carreira militar, chegando, na década de 30, a tenente do Exército brasileiro. Da mesma forma, começou cedo sua simpatia pelas forças políticas de esquerda e, em 1935, ele passou a atuar de forma clandestina na Aliança Nacional Libertadora, o que lhe rendeu, um ano depois, sua prisão e expulsão do Exército.
Fora do país, ele foi militante voluntário na luta antifascista na Espanha e lutou na resistência francesa contra a ocupação nazista. Ao voltar ao Brasil em 1946, Apolônio filiou-se ao PCB, atuando de forma incansável até 1964, quando o partido teve seu registro cassado pela ditadura militar. Jogado novamente à clandestinidade, dedicou-se ao combate ao regime, atuando em condições adversas e perigosas, colocando em risco, muitas vezes, sua própria vida.
Em 1979, tivemos a honra de ter este homem admirável assinando a ficha número 1 do Partido dos Trabalhadores, ao lado de sua companheira de vida, Renée de Carvalho, uma grande mulher e lutadora. Ele foi não só fundador do PT, mas também dirigente por muitos anos. Sou testemunha ocular da emoção e quase unanimidade com que o partido ouvia sua palavra abalizada de herói revolucionário. O nosso “General do PT” e “Herói de Três Pátrias” nos emocionava ao definir o PT como: “A mais bela forma e o mais belo modelo de democracia interna partidária que já tinha existido nesse meio milênio de existência de nosso país”.
Insisto sempre na ideia de que Apolônio – e todos os que dedicaram a própria vida ao esforço para que o Brasil chegasse ao seu momento atual de democracia e combate à pobreza – não deve ser lembrado como vítima, e sim como herói. A vida de Apolônio mostrou que vale a pena enfrentar a batalha pela igualdade e pela justiça social em qualquer tempo e em qualquer lugar do mundo.
Esse otimista irreversível nos ensinou que a perseverança e a honestidade de propósito serão sempre recompensadas. Ele foi, sem dúvida, um dos maiores exemplos de bravura, coragem e coerência da história brasileira. Apolônio partiu deste mundo em 2005, deixando-nos a melhor de todas as lições: a de que vale a pena sonhar. Faço minhas as palavras desse grande mestre: “Quem passa pela vida sem um horizonte definido, que não tem um ideal pelo qual possa e queira lutar, está sujeito à pecha de mediocridade. Não vive, passa apenas pela vida”.
*Presidente de honra do PT e ex-presidente da República
Publicado no JORNAL ZERO HORA
20 de maio de 2012 | N° 17075
Memória e Contexto: Apolônio de Carvalho
O programa Memória e Contexto fala sobre a vida de Apolônio e Renée de Carvalho e entrevista Raul de Carvalho e Stela Grisotti. Com a participação dos músicos Márcia Cherubin e Beto Marsola.
Assista ao vídeo:
Assista ao vídeo:
Ítalo Cardoso relembra a história de Apolônio no Sala de Visitas.
O
vereador Ítalo Cardoso recebe Raul de Carvalho, Aytan Sipahi e Alípio
Freire no programa Sala de Visitas com o tema Centenário de Apolônio de
Carvalho.
Assista ao vídeo:
Sala de Visitas - Apolônio de Carvalho - parte 1
Sala de Visitas - Apolônio de Carvalho - parte 2
Sala de Visitas - Apolônio de Carvalho - parte 3
Sala de Visitas - Apolônio de Carvalho - parte 1
Sala de Visitas - Apolônio de Carvalho - parte 2
Sala de Visitas - Apolônio de Carvalho - parte 3
Vale a pena sonhar
Filme dos cineastas Rudi Böhm e Stela Grisotti inspirado no livro autobiográfico de Apolônio de Carvalho. Retrata os sonhos e utopias de uma geração de homens e mulheres que dedicaram suas vidas na luta pela justiça, liberdade e democracia. O fio condutor é a história de vida de Apolônio de Carvalho, que lutou junto aos republicanos na Guerra Civil Espanhola, na Resistência Francesa contra o nazismo e no combate à ditadura militar brasileira nos anos 1960, relatando também fatos da vida cotidiana e familiar de um militante que assina a ficha número um de filiação ao Partido dos Trabalhadores.
Recordações de Família
Algumas estórias contadas pelo filho René Louis
A greve dos datilógrafosNo começo dos anos 60, Apolônio assinava uma coluna no Jornal Novos Rumos. Assinava porque tinha corrido atrás e se proposto, não por um chamado espontâneo da direção. A coluna se chamava Teoria e Prática e destinava-se a responder perguntas teóricas e políticas dos leitores. Muitas vezes Apolônio, considerando a importância de certos temas, redigia ele mesmo a pergunta que seria respondida. Ler mais ...
Apolônio era naturalmente prolixo. Fazer o que escrevia caber nos limites da coluna, era um martírio semanal. E um martírio coletivo, por que a Renée e os filhos eram chamados a contribuir, datilografando o texto. Ora, quem bate a máquina lê o texto, e pode ou não concordar. Dois conflitos, em particular, marcaram a história dessa atividade coletiva: as democracias populares e o caminho pacífico ao socialismo. Dirão vocês, embora sabendo que a história se situa no começo dos sessenta: era procurar sarna para se coçar. Era mesmo, mas ele achava, com razão, que eram temas que era importante a militância discutir.
As ditas democracias populares já foi um bom conflito. Ambos os conceitos eram de difícil aplicação às realidades do leste europeu. A mão de obra datilografista discordou: nem democracia nem popular. Era a “linha do partido”, nada a fazer senão datilografar. Mas a tensão começava a se acumular. E estourou na crônica sobre o famoso “caminho pacífico ao socialismo”.
A briga foi feia. Ele perguntava: então como vocês responderiam? Apesar de respostas que buscavam um meio termo, esbarrávamos todos [sim porque o Apolônio tinha se convencido] sempre na questão da linha do partido. A linha diz que é possível, dizíamos, não diz que é provável, que já ocorreu ou que ocorrerá, dizíamos, procurando um acordo [estávamos em greve de datilografia]. Não tenho certeza do final da história, apenas me lembro que o próprio Apolônio datilografou o texto definitivo, sei apenas que não infringiu a linha, mas nem o mais sábio dos sábios, ao lê-lo acharia possível esse tal de caminho pacífico.
São estórias de outros tempos, que mostram a disciplina implacável a que estavam sujeitos [e se auto-sujeitavam] os militantes , e a “dialética” necessária para permanecer “dentro da linha”, sempre interpretada pelos de cima.
O dia em que Apolônio atropelou uma locomotiva da Central do Brasil
Apolônio e alguns outros companheiros tiveram que antecipar sua volta ao Brasil [estavam na antiga URSS, em cursos de filosofia e economia] a chamado da direção, em função das divergências e da crise que levou à saída de Agildo Barata do partido [então, PCdoB]. Renée permaneceu algum tempo ainda na então URSS. Apolônio estava sem seu anjo da guarda. Com Agildo haviam saído muitos intelectuais e profissionais liberais. Uma de suas conseqüências foi a desarticulação da comissão de finanças. Em resumo: não havia dinheiro para nada. Apolônio, completamente duro, dormia no sofá da casa de um casal de companheiros e sabendo que tinham pouco dinheiro, para não pesar, não comia todo dia na casa dos companheiros. Ou seja, saltava duas de cada três refeições. Foi então convocado para uma reunião ampliada do Comitê Central do partido. Passou várias noites estudando os documentos da reunião e preparando sua intervenção. No dia, de manhã cedo, colocou tudo em uma pasta e foi cuidar de seus compromissos, antes de ir ao local de encontro onde o buscariam para levar à reunião. Sem dinheiro, ia de um compromisso a outro a pé. Lá pelo meio do dia, sol a pino e barriga roncando, foi cruzar a linha férrea da Central. Acho que era em Olaria, e não havia cancela. Apenas um buraco no muro dos dois lados da linha. Cansado e pensando na reunião, olhou para apenas um dos lados da linha férrea, viu que estava livre e começou a atravessar. Do outro lado da linha, entretanto, vinha uma locomotiva, que ele atropelou com o braço que carregava a pasta. Fratura exposta, sangue, populares chamam a ambulância que o leva para o Hospital Getúlio Vargas. Sempre carregando a pasta no mesmo braço, reagia, não queria perder a reunião. Quando iam operá-lo, disse até que preferia que cortassem logo o braço para ficar livre e buscar a pasta. Eram os documentos do Partido, sob responsabilidade dele, e não podia deixar que chegassem às mãos da polícia. Só sossegou quando um médico, atento ao que se passava, trouxe a pasta. Só assim deixou a operação realizar-se. Ficou uma cicatriz no braço, um pino no cotovelo e o sentimento de culpa: havia falhado com o Partido, não fora a reunião. O sentimento do dever militante e incondicional ao Partido, era uma marca muito forte nessa geração de militantes, e em particular em Apolônio.
O dia em que Apolônio atropelou uma locomotiva da Central do Brasil
Apolônio e alguns outros companheiros tiveram que antecipar sua volta ao Brasil [estavam na antiga URSS, em cursos de filosofia e economia] a chamado da direção, em função das divergências e da crise que levou à saída de Agildo Barata do partido [então, PCdoB]. Renée permaneceu algum tempo ainda na então URSS. Apolônio estava sem seu anjo da guarda. Com Agildo haviam saído muitos intelectuais e profissionais liberais. Uma de suas conseqüências foi a desarticulação da comissão de finanças. Em resumo: não havia dinheiro para nada. Apolônio, completamente duro, dormia no sofá da casa de um casal de companheiros e sabendo que tinham pouco dinheiro, para não pesar, não comia todo dia na casa dos companheiros. Ou seja, saltava duas de cada três refeições. Foi então convocado para uma reunião ampliada do Comitê Central do partido. Passou várias noites estudando os documentos da reunião e preparando sua intervenção. No dia, de manhã cedo, colocou tudo em uma pasta e foi cuidar de seus compromissos, antes de ir ao local de encontro onde o buscariam para levar à reunião. Sem dinheiro, ia de um compromisso a outro a pé. Lá pelo meio do dia, sol a pino e barriga roncando, foi cruzar a linha férrea da Central. Acho que era em Olaria, e não havia cancela. Apenas um buraco no muro dos dois lados da linha. Cansado e pensando na reunião, olhou para apenas um dos lados da linha férrea, viu que estava livre e começou a atravessar. Do outro lado da linha, entretanto, vinha uma locomotiva, que ele atropelou com o braço que carregava a pasta. Fratura exposta, sangue, populares chamam a ambulância que o leva para o Hospital Getúlio Vargas. Sempre carregando a pasta no mesmo braço, reagia, não queria perder a reunião. Quando iam operá-lo, disse até que preferia que cortassem logo o braço para ficar livre e buscar a pasta. Eram os documentos do Partido, sob responsabilidade dele, e não podia deixar que chegassem às mãos da polícia. Só sossegou quando um médico, atento ao que se passava, trouxe a pasta. Só assim deixou a operação realizar-se. Ficou uma cicatriz no braço, um pino no cotovelo e o sentimento de culpa: havia falhado com o Partido, não fora a reunião. O sentimento do dever militante e incondicional ao Partido, era uma marca muito forte nessa geração de militantes, e em particular em Apolônio.
Grandeza
SÉRGIO SISTER. Jornalista e fundador do Partido dos Trabalhadores
Uma das alegorias do comunismo é a aurora. O sol subindo, a luz, o nascimento de um dia cheio de cores e promessas. Vem aí um mundo novo. Numa dessas auroras, no Rio de Janeiro, em 1968, eu caminhava à beira-mar com um comunista heróico e muito otimista que me surpreendeu com uma conversa bem amena sobre o presente e o futuro. Quem chegasse perto ia ouvir o velho Lima falar de estratégia e tática junto com histórias engraçadas da revolução e de revolucionários. Não deixou em paz o senhor peitudinho que passou correndo por nós - um militar de pijama tentando manter a forma. O que você achou de Terra em Transe? E a redação da Última Hora, como é? Falou dos filhos, da França, da nossa base operária em Niterói. Tudo o que dizia dava sempre a sensação de que tinha sido de alguma forma vivido por ele. Foi o tempo de ir de Botafogo ao Santos Dumont e de clarear totalmente o céu. Simpática demais essa aurora para esquecer. Ler mais ...
Eu tive a sorte de conhecer o Lima, aliás, o Apolonio de Carvalho naquele ano, pouco depois de ter tido a sorte de conhecer “Carlos” Mário Alves, “Sabino” Jacob Gorender, Sônia Irene, Valdizar do Carmo, Aytan e Helenita Sipahi, Adilson Citelli, entre outras pessoas legais que construíam, na moita, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR. Apesar do convívio, eu só saberia que ele era ele, aquele herói todo, quase um ano mais tarde, porque o Valdizar não agüentou minha ignorância.
Mas desde o começo saquei que era um grande homem. Chegava na casa-aparelho da rua Cubatão ou da Rua dos Otonis com a alegria transbordante de não se sabe donde. Queria experimentar a perna de cordeiro assada e não dispensava um gole. Educado, brincalhão, generoso, espirituoso, como se dizia antigamente. Seria esse o homem da revolução?
Apesar de seus méritos militares na Espanha e na França, ele nunca considerou um mérito especial ser militar, fazer a guerra e, especialmente, matar. Em meio aos debates sobre a luta armada em nosso partido, foi sempre firme contra as ações isoladas e ataques de desespero. A resistência com as armas era apenas uma contingência e deveria ser feita pelo povo – nunca por um grupo de revolucionários iluminados, cujo isolamento era a receita certa para o autoritarismo. Antes que meu filho lhe perguntasse se havia matado muita gente nas guerras, eu pensava que era muito fácil e natural eliminar fascistas e nazistas em batalhas e escaramuças, como a gente vê nos filmes. Surpreendi-me com suas descrições detalhadas da luta e de seu sofrimento no momento decisivo de acabar com o inimigo. Não é fácil matar.
Para ele é fácil ouvir. Apolonio tem uma atitude básica de abertura para ver e ouvir coisas novas. Nesses mais de 30 anos, nunca o vi dar um tropeço preconceituoso. Nem sobre o tropicalismo da época, nem sobre Cinema Novo, nem sobre todas aquelas extravagâncias da juventude dos anos 60. Isso não é pouco. Abria-se então um grande fosso entre o que nós e nossos pais pensávamos, queríamos, sentíamos, gostávamos, a ponto de tornar a convivência quase impossível. Os velhos comunistas tinham tanta idade quanto nossos pais, eram também eles pais de família e vinham de uma tradição bastante moralista do Partidão. Sobre as novidades demasiado diferentes, ele chegava com cuidado e perguntava com curiosidade. Mais tarde, já nos anos 80, perguntou muito sobre as pinturas abstratas e monocromáticas que eu fazia. Não discutia os fundamentos - comentava apenas que aquilo fazia parte do mundo da liberdade. Ele a sua companheira Renée foram muitas vezes as primeiras pessoas a chegar nas minhas exposições.
Para os velhos e jovens comunistas, tão forte quanto o choque dos costumes, foi o nascimento de um partido de massas não marxista, sem centralismo democrático, cheio das tendências. Como Apolonio se saiu com essa? A família Carvalho ainda estava exilada em Paris, em 1978, quando encontrei Apolonio ansioso por informações sobre o movimento sindical no ABC paulista. Era a época das primeiras grandes greves nas montadoras de veículos e, depois, em toda a indústria metalúrgica, que ajudaram a liquidar a ditadura no Brasil. Enquanto boa parte da esquerda ainda olhava as chamadas lideranças autênticas (ou o novo sindicalismo) com muita desconfiança - porque não havia saído das chamadas “oposições sindicais”, mais ligadas à Igreja progressista e ao que restou dos partidos marxistas - Apolonio pedia mais e mais detalhes. Ele se animava, sorria e parecia se deliciar com minha confirmação de que dali de São Bernardo do Campo saíam coisas verdadeiras. Quando voltou ao Brasil, já anistiado, das primeiras coisas que pediu foi para ser apresentado ao Lula. Fomos lá nos metalúrgicos. Era visível a emoção do Lula ao encontrá-lo. Para escândalo de muitos antigos e novos militantes (inclusive trostskistas) guiados pela concepção de partido leninista, cheia de regras e de cadeias pouco democráticas de comando, eis que Apolonio de Carvalho ajuda a construir, como um militante comum, o Partido dos Trabalhadores. Tal como já o havia feito Mário Pedrosa.
Algumas dessas coisas estão no seu livro de memórias Vale a Pena Sonhar (Editora Rocco. Rio de Janeiro, 1997). Leia. Você vai ver, como bem o disse Diogo Rosas Gugish, em uma resenha, que Apolonio escreve como se tivesse passado a vida a empunhar uma pena e não uma arma. E com uma modéstia do tamanho de sua grandeza.
Uma entrevista
Esta é provavelmente a última entrevista de Apolonio de Carvalho, com quem tive a felicidade de conversar um mês antes de falecer. Foi uma conversa longa e cuidadosa, com a supervisão de Renée de Carvalho, a sua companheira de vida e de resistência, que acompanhava a saúde frágil do nosso herói, já com dificuldade de respirar, mas cheio de vontade de falar.Leia a entrevista...
Um histórico lutador do povo
No dia 09 de fevereiro de 2012, o lutador e militante Apolonio de Carvalho estaria completando 100 anos de vida. Para homenageá-lo e compartilhar com todos um pouco das suas ideias e experiências, a Página do MST publica novamente a entrevista que ele concedeu à Revista Sem Terra, um mês antes de vir a falecer.Leia a entrevista no site...
Viúva de Apolônio de Carvalho relembra trajetória de lutas
CLAUDIA ANTUNES"Aqui morou Apolônio de Carvalho, combatente da liberdade." A placa no portão do prédio antigo no Leblon, homenagem dos vizinhos, leva ao apartamento de quarto e sala onde mora Renée de Carvalho, tenente da Resistência francesa ao nazismo.
Renée, 86, dividiu 62 anos de vida com Apolônio (1912-2005) – militar que aderiu à Aliança Libertadora Nacional nos anos 1930, combateu pela República na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), lutou na Resistência francesa, foi guerrilheiro no Brasil nos anos 1960 e fundador do PT.
Em fevereiro, quando Apolônio completaria 100 anos (dia 9), Renée e os filhos René e Raul doarão documentos e fotos – o que sobreviveu a anos de clandestinidade – ao Arquivo Nacional.
Ela lançará um livro com sua história, resumida no depoimento abaixo.
Ler mais ...
Nasci em 1925 em Marselha, que não tem grandes atrativos. Houve um cardeal que disse que os monumentos da cidade são seu céu e seu mar. Meu avô materno, Étienne Bezias, era carpinteiro da Marinha mercante, naquela época um operário de ponta. Ele tinha uma boa voz e cantava ópera, frequentava ópera, teatro de vanguarda. O único livro que sobrou dele era de Victor Hugo, um escritor combativo. A família do meu pai, Louis, era da pequena burguesia. Meu avó, Thomas Laugery, era dono de um "débit de tabac" [tenda de tabaco], tinha autorização do governo para vender cigarros, selos. Na época ele era um "radical" da política francesa, um pouquinho de esquerda, um pouquinho anticlerical, essas pessoas que lutavam pela instrução universal laica etc.
Meu pai não teve muito sorte porque o pai dele comprou para ele um restaurante, mas veio a Primeira Guerra e ele lutou quatro anos e mais alguns meses, porque foi mandado para combater o governo soviético, que tinha acabado de fazer a revolução. Quando voltou, teve que recomeçar a vida e foi quando se casou com a minha mãe, Juliette.
Naquela época nós crianças não nos dávamos conta de que a 1ª Guerra Mundial tinha terminado pouco antes. Parecia uma coisa longe até que veio a crise de 1929 e a vida se tornou difícil. Havia muito desemprego, e em toda Europa a ascensão do fascismo. Foi então que meus pais acordaram para a política. Em Marselha a política era dominada por uma máfia, um submundo, e os comunistas começaram a aparecer com um programa, com propostas novas.
Meu pai entrou no Partido Comunista e toda família foi junto. A gente discutia política em torno da mesa, tipo família italiana. Veio o governo da Frente Popular [coalizão de comunistas, socialistas e radicais, no poder entre 1935 e 1938]. Nós desfilávamos no 1º de Maio, havia um entusiasmo que contaminava as crianças de 9, 10 anos. Foi a época das grandes greves. No fundo de nossa casa havia uma fábrica onde muitas moças trabalhavam costurando saco. Elas entraram em greve e não dormiam, dançavam a noite toda, tinham um gramofone de corda. A vizinhança toda xingava, e nos ficávamos na janela felizes da vida. Meu irmão Daniel era pequeno, tinha três anos menos do que eu. Nós dois íamos coletar dinheiro para os grevistas.
Meu pai na época deixou o restaurante e foi para a Marinha mercante, onde fez parte da célula comunista. Minha mãe foi militar com as mulheres dos marítimos. A minha tia que era um pouco intelectual disse: "Não sei se vou entrar para o partido, mas eu vou ler 'O Capital' e se me convencer eu entro. Entrou".
Quando a Frente Popular ascendeu na Espanha [1936], foi outro entusiasmo. Lembro que os empregados dos bares e dos restaurantes viviam das gorjetas. Eles entraram em greve. Havia umas faixas dizendo: "os empregados deste bar não recebem gorjeta". Não é bonito, isso? O trabalhador que vive das gorjetas, mas quer viver de um salário decente. Eram coisas que mesmo criança a gente entendia.
A Frente Popular foi se degradando aos poucos, perdendo o fôlego na medida em que fazia uma politica internacional muito ruim, seguindo a Inglaterra nas concessões feitas aos alemães. Depois veio o pacto germano-soviético, que para o PC francês foi um golpe forte, muita gente deixou o partido porque não entendia como Hitler e os comunistas podiam estar juntos. O PC foi fechado, entrou na clandestinidade. Depois houve a declaração de guerra da França à Alemanha, mas era uma guerra esquisita. Todo mundo estava mobilizado, mas não havia combate. Na verdade o inimigo sempre foi a União Soviética, não a Alemanha.
O governo francês, mesmo antes da vitória alemã, começou a tomar medidas contra os estrangeiros, que na época incluíam muitos refugiados políticos do fascismo na Alemanha, da Europa Central, muitos judeus e ex-combatentes na Espanha. Apolônio era um deles [deixou a Espanha em 1939 e, na França, foi confinado em um campo de concentração]. Depois veio a guerra de verdade, meu pai foi mobilizado e mandado para a Noruega para desembarcar soldados contra uma ofensiva alemã. Depois foi para Dunquerque [cidade do norte da França, palco de batalha vencida pelos alemães em 1940] e ajudou a retirar para a Inglaterra os soldados derrotados.
A França perdeu de uma maneira vergonhosa, pessoas que moravam na zona de ocupação, no norte, vinham para o sul de charrete, a pé. A região ao sul do Loire ficou com o [marechal Philippe] Pétain, que colaborava com o alemães e entregava tudo que pediam, alimentos, armas.
A maioria dos resistentes presos na época foi capturada pela polícia francesa, não pela Gestapo. Minha irmã mais velha, Paulette, que havia entrado para a clandestinidade, foi presa em Lyon em 1942. Foi condenada à morte, mas, como ainda não tinha 21 anos, a pena foi comutada para prisão perpetua. Acabou deportada para a Alemanha e só voltou no fim da guerra.
Eu e meu irmão continuamos em casa e atuávamos como uma espécie de agente de ligação da Frente Nacional, um dos movimentos da Resistência, fundado pelos comunistas. Escondíamos pessoas mandadas pela direção, transportávamos material militar, panfletos, jornais clandestinos. Como os judeus não podiam pegar os tíquetes de racionamento porque iriam se entregar ao mostrar a identidade, negociávamos esses tíquetes para eles. Em contato com os imigrantes, conheci o Apolônio, que já estava atuando na resistência armada.
Nos casamos em 1943, quer dizer, fomos morar juntos. Eu tinha 18 anos, era quase uma criança. Nós fizemos um plano de promover a fuga da prisão feminina de Marselha, onde estavam minha irmã e minha tia, aquela do "Capital". Acabou não dando certo e as prisioneiras foram mandadas para uma outra prisão, em Rennes, na zona ocupada pelos alemães. Então lutamos juntos, e assim foi nossa vida em comum.
Ele sempre pensava que voltaria ao Brasil, porque só dois ex-combatentes na Espanha tinham ficado na França. Ele e um paraguaio, Emiliano Palácios, que foi mandado para lutar na zona ocupada e desapareceu. Depois da Libertação, o Apolônio foi à procura dele, mas não o encontrou.
Para mim vir ao Brasil não foi uma coisa assim tão alegre. Não falava português, já tinha um filho pequeno, o René, e esperava o outro, Raul. Viemos em dezembro de 1946 e logo o Partido Comunista foi posto na clandestinidade. Moramos um pouco no Rio, um pouco em São Paulo. Não passamos mais de seis meses em uma casa.
Nessa época fomos três ou quatro vezes ver filmes franceses, muito bonitos. O companheiro que vivia conosco, João Amazonas [depois fundador do PCdoB] dizia, "eu tomo conta dos meninos, vocês vão ao cinema". Mas nos sentíamos tão culpados.
Em 1954, antes do suicídio de Getúlio Vargas, o Apolônio foi mandado para estudar na União Soviética, e eu fiquei aqui com os dois meninos.
Mais tarde eu me juntei a ele em Moscou e os meninos ficaram com minha família na França. Lá foram para a escola, tiveram uma vida normal. Voltamos no governo de Juscelino, a família toda, e aí passamos a ter uma vida praticamente normal.
Quando veio o golpe de 1964, o Apolônio foi embora no mesmo dia, desapareceu na clandestinidade. Ele já estava insatisfeito com a política do partido, tinha perdido o entusiasmo muito juvenil que tinha. O Apolônio foi sempre um militante disciplinado, mas muito independente. Ele sempre teve dúvidas, entende? Os franceses somos muito propensos a criticar, pensar com a própria cabeça. Quando eu despertei, acho que dei uma ajuda para ele despertar também.
Ele começou a divergir e em 1967 saiu, tomando o rumo do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), com Mário Alves, Jacob Gorender. Nessa época eu não estava clandestina, precisava me sustentar, e trabalhava na Embaixada da Hungria.
O AI-5 (Ato Institucional nº 5, de 1968) endureceu a repressão. Eu me preparava para me juntar a ele na clandestinidade quando foi preso, em janeiro 1970, e os meus filhos também foram presos. O Apolônio foi logo trocado pelo embaixador alemão e foi para a Argélia. Depois o René foi trocado pelo cônsul da Suíça. Na lista que os revolucionários propunham para trocar tinha tanto Carvalho, eles queriam trocar os filhos do Apolônio, mas o Raul acabou ficando aqui, passou três anos na cadeia.
Fui à Argélia visitar o Apolônio, acho que fui a segunda pessoa a chegar, mas voltei e fiquei aqui até Raul sair da prisão. O Apolônio queria ir para a França onde tinha minha família, mas a França não quis recebê-lo. E olha que ele era coronel do Exército francês, a título da Resistência. Ele foi à Suíça, mas acabou expulso. Também, tinham prendido o cônsul suíço. Acabou ficando na Argélia, onde havia muitos combatentes da África e até dos EUA, os Pantera Negras. Ficavam num antigo centro de férias dos funcionários franceses, da época colonial.
Finalmente, por intervenção de antigos combatentes e de um deputado socialista, o Michel Rocard [depois premiê francês], ele teve permissão para ficar na França, onde já começamos a conhecer o PT. Voltamos depois da Anistia, em 1979. Fui para São Paulo, vi as greves dos metalúrgicos. Fiquei muito entusiasmada porque eu achei que o PC sempre quis ser um partido de massa mas não conseguiu, e o PT já nasceu de massa. Depois é claro que a coisa não foi bem assim, o partido se institucionalizou. Não perdeu o atrativo, mas perdeu um pouco aquele entusiasmo. Ele não gostou tanto de certas coisas, mas sempre foi ligado ao PT.
O Apolônio ficou na direção do PT durante sete anos. Na época só havia militantes voluntários e ele pagava as próprias viagens. Nós sempre vivemos muito modestamente. Quando voltamos, ele recebia uma pensão de segundo tenente [posição que tinha quando foi expulso do Exército, em 1936], que era muito pouco. Só depois, com a Constituição de 1988, ele foi reconhecido como coronel. Fui muito feliz com o Apolônio. Nos queríamos muito. Se tivesse que fazer, começaria tudo de novo.
Breve homenagem ao homem, revolucionário e petista
Salve Apolônio de Carvalho!
Publicado em 16/11/2011 no blog da Fundação Perseu Abramo
Coletivo de Formação Política Apolônio de Carvalho
Apolônio de Carvalho, nascido em Corumbá (MS) no dia 09 de fevereiro de 1912, foi uma figura ímpar no cenário da vida política brasileira.
Poucos como ele viveram com tanta intensidade a “paixão libertária” que o impediu, desde os seus anos de cadete a Escola Militar de Realengo até se tornar tenente do Exército, a engajar-se na luta pelos ideais socialistas e contra os regimes de opressão. Em entrevista concedida à Revista Teoria e Debate, em 1989, declarou: “Em fins de 1933 eu já era oficial, achava que era necessário mudar a sociedade brasileira”.
Ler mais ...
Em 1935, ajudou a criar a Aliança Nacional Libertadora (ANL). Foi preso pelo governo Vargas, em 1936, quando lhe foi retirada a patente militar. É expulso do Exército!
Em 1937 ele sai da prisão e passa a militar no Partido Comunista Brasileiro. Com sua experiência militar, é orientado a embarcar para a Europa onde participaria das Brigadas Internacionais, lutando ao lado dos Republicanos contra os fascistas liderados pelo general Francisco Franco.
Durante a Guerra Civil Espanhola ele assume várias tarefas e chega a comandar grupos das Brigadas.
Em 1939, com a derrota dos Republicanos, Apolônio deixa a Espanha e parte para a França. Fica em um campo de refugiados até 1940, quando consegue fugir para Marsella.
Em 1942, a França está sob o domínio alemão e Apolônio ingressa na Resistência Francesa. Torna-se, então, comandante de um grupo de guerrilheiros “partisans” e é responsável pelas atividades na região sul do país. Neste mesmo ano, conhece Renée, uma jovem militante da Resistência que se tornou sua companheira e com quem viveu o restante da sua vida.
Dois anos depois, 1944 vão para Nimes e organizam a fuga de 23 militantes da Resistência que estavam presos. Fogem novamente e vão atuar em Toulouse. Apolônio de Carvalho comanda a libertação de várias cidades francesas.
Terminada a guerra, Apolônio reencontra Renée e seu filho, em Paris. Por todos os seus feitos, é condecorado por Charles de Gaulle com a medalha da Legião de Honra da França.
Toda a sua vida é assinalada por uma coerência que se manifestou sempre: da militância no PCB e na Aliança Nacional Libertadora; da guerra civil espanhola à Resistência Francesa. No Brasil participou da luta clandestina contra a ditadura militar, enquanto membro do PCRB, culminando com sua militância no Partido dos Trabalhadores.
Por conta dessas suas idéias e atitudes, Apolônio de Carvalho passou parte da sua vida no exílio e foi transformado em personagem por Jorge Amado. Apolônio se transformou em Apolinário, da obra “Subterrâneos da Liberdade”.
O escritor baiano chamava o ativista de “Herói de três pátrias”, justamente por sua participação em todas essas lutas.
Com o golpe militar de 1964 ele passa a clandestinidade e vive no Rio de Janeiro, longe da família. Diverge das posições do PCB e, junto com Mário Alves e Jacob Gorender, entre outros dissidentes, cria o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário – PCBR
Apolônio e Mário Alves foram presos no Rio, em janeiro de 1970. Mário Alves é assassinado pela ditadura e Apolônio é violentamente torturado durante muito tempo.
Trocado pelo embaixador alemão seqüestrado no Rio de Janeiro, Apolônio vai para Argel. Seus filhos, também presos, são depois trocados pelo embaixador suíço, em 1971. A família volta a se reunir em Paris.
Em 1979, com a Anistia, volta ao Brasil e ajuda a construir o Partido dos Trabalhadores, sendo um dos seus fundadores. Em 1980 o PT é lançado oficialmente e Apolônio participa ativamente das lutas do partido. “Nós tivemos uma imensa simpatia pelo PT”, disse ele.
Permanece na direção do partido até 1987, quando se afasta por orientação médica.
Apesar das limitações da saúde e da idade, Apolônio prossegue como um militante que não se furtará jamais aos debates e à manifestação pública de suas posições de socialista convicto. Um socialista que soube combater criticamente as distorções do “socialismo real”. Entusiasta do MST, ao qual sempre prestou apoio e junto ao qual esteve sempre presente. Para ele, um mundo socialista era sempre possível e poderá estar sempre ao alcance de nossas mãos, desde que estejamos dispostos a nos organizar e a lutar por ele.
Viveu sua vida, ao longo de 93 anos, de forma coerente com seus ideais. Um homem sempre cordial, sempre amável, com os companheiros e com as pessoas amigas, conhecidas e desconhecidas. Nunca se exaltando nas discussões nem ofendendo quem, porventura, divergisse de duas posições. Era, por convicção e temperamento, um otimista.
Nas piores circunstâncias e diante de derrotas graves, sempre encontrava algum aspecto que podia ser considerado positivo, que podia significar um ganho para as organizações empenhadas na vitória da democracia e do socialismo.
Apolônio de Carvalho faleceu no dia 23 de setembro de 2005
Por tudo isso, pelo nosso companheiro “Herói de Três Pátrias”, pelo “General do PT” que ele de fato foi, e pelo seu exemplo de lutador por uma socidade mais justa, nossa saudação neste dia.
Viva o companheiro e sempre Herói!
Viva Apolônio de Carvalho.
Em 1937 ele sai da prisão e passa a militar no Partido Comunista Brasileiro. Com sua experiência militar, é orientado a embarcar para a Europa onde participaria das Brigadas Internacionais, lutando ao lado dos Republicanos contra os fascistas liderados pelo general Francisco Franco.
Durante a Guerra Civil Espanhola ele assume várias tarefas e chega a comandar grupos das Brigadas.
Em 1939, com a derrota dos Republicanos, Apolônio deixa a Espanha e parte para a França. Fica em um campo de refugiados até 1940, quando consegue fugir para Marsella.
Em 1942, a França está sob o domínio alemão e Apolônio ingressa na Resistência Francesa. Torna-se, então, comandante de um grupo de guerrilheiros “partisans” e é responsável pelas atividades na região sul do país. Neste mesmo ano, conhece Renée, uma jovem militante da Resistência que se tornou sua companheira e com quem viveu o restante da sua vida.
Dois anos depois, 1944 vão para Nimes e organizam a fuga de 23 militantes da Resistência que estavam presos. Fogem novamente e vão atuar em Toulouse. Apolônio de Carvalho comanda a libertação de várias cidades francesas.
Terminada a guerra, Apolônio reencontra Renée e seu filho, em Paris. Por todos os seus feitos, é condecorado por Charles de Gaulle com a medalha da Legião de Honra da França.
Toda a sua vida é assinalada por uma coerência que se manifestou sempre: da militância no PCB e na Aliança Nacional Libertadora; da guerra civil espanhola à Resistência Francesa. No Brasil participou da luta clandestina contra a ditadura militar, enquanto membro do PCRB, culminando com sua militância no Partido dos Trabalhadores.
Por conta dessas suas idéias e atitudes, Apolônio de Carvalho passou parte da sua vida no exílio e foi transformado em personagem por Jorge Amado. Apolônio se transformou em Apolinário, da obra “Subterrâneos da Liberdade”.
O escritor baiano chamava o ativista de “Herói de três pátrias”, justamente por sua participação em todas essas lutas.
Com o golpe militar de 1964 ele passa a clandestinidade e vive no Rio de Janeiro, longe da família. Diverge das posições do PCB e, junto com Mário Alves e Jacob Gorender, entre outros dissidentes, cria o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário – PCBR
Apolônio e Mário Alves foram presos no Rio, em janeiro de 1970. Mário Alves é assassinado pela ditadura e Apolônio é violentamente torturado durante muito tempo.
Trocado pelo embaixador alemão seqüestrado no Rio de Janeiro, Apolônio vai para Argel. Seus filhos, também presos, são depois trocados pelo embaixador suíço, em 1971. A família volta a se reunir em Paris.
Em 1979, com a Anistia, volta ao Brasil e ajuda a construir o Partido dos Trabalhadores, sendo um dos seus fundadores. Em 1980 o PT é lançado oficialmente e Apolônio participa ativamente das lutas do partido. “Nós tivemos uma imensa simpatia pelo PT”, disse ele.
Permanece na direção do partido até 1987, quando se afasta por orientação médica.
Apesar das limitações da saúde e da idade, Apolônio prossegue como um militante que não se furtará jamais aos debates e à manifestação pública de suas posições de socialista convicto. Um socialista que soube combater criticamente as distorções do “socialismo real”. Entusiasta do MST, ao qual sempre prestou apoio e junto ao qual esteve sempre presente. Para ele, um mundo socialista era sempre possível e poderá estar sempre ao alcance de nossas mãos, desde que estejamos dispostos a nos organizar e a lutar por ele.
Viveu sua vida, ao longo de 93 anos, de forma coerente com seus ideais. Um homem sempre cordial, sempre amável, com os companheiros e com as pessoas amigas, conhecidas e desconhecidas. Nunca se exaltando nas discussões nem ofendendo quem, porventura, divergisse de duas posições. Era, por convicção e temperamento, um otimista.
Nas piores circunstâncias e diante de derrotas graves, sempre encontrava algum aspecto que podia ser considerado positivo, que podia significar um ganho para as organizações empenhadas na vitória da democracia e do socialismo.
Apolônio de Carvalho faleceu no dia 23 de setembro de 2005
Por tudo isso, pelo nosso companheiro “Herói de Três Pátrias”, pelo “General do PT” que ele de fato foi, e pelo seu exemplo de lutador por uma socidade mais justa, nossa saudação neste dia.
Viva o companheiro e sempre Herói!
Viva Apolônio de Carvalho.
Os Roteiros de Apolônio de Carvalho
Marcelo Mário de Melo
O livro de memórias de Apolônio de Carvalho, Vale a Pena Sonhar, representando mais uma contribuição à avaliação da prática da esquerda de inspiração socialista, trás o interesse especial da sua abrangência histórico-política, pois o autor, personagem central da narrativa, não teve uma atuação limitada ao território brasileiro.
Tenente em 1936, Apolônio se liga à Aliança Nacional Libertadora, é preso e tem a patente casada. Depois de cerca de um ano entre a Casa de Detenção e a Casa de Correção, no Rio de Janeiro, sendo companheiro de cela de Graciliano Ramos e Apparicio Torelly, o Barão de Itararé, é libertado e segue para Espanha, integrando-se nas Brigadas Internacionais, que ao lado da república, combatiam as tropas franquistas. Como oficial de artilharia, Apolônio exerceu funções de comando até a derrota final das forças republicanas.
Num momento seguinte ele foge de um campo de refugiados, na França, e se integra à resistência contra o nazi-fascismo, destacando-se como responsável militar da região sudeste e comandante da zona sul.
Sob seu comando se deram as libertações de Carmaux e Albi e Toulousse.
No Brasil, Apolônio foi presidente da União da Juventude Comunista, logo fechada, seguindo-se a cassação do registro do PC, em 1947. Vive um novo ciclo de clandestinidade,passando à semilegalidade, iniciada na “era JK” e encerrada com o golpe de 1964.
Ler mais ...
Nos idos do golpe ele é membro do comitê central do PC, articula-se na chamada “Corrente Revolucionária” do partido, participa da fundação do PCBR – Prtido Comunista Brasileiro Revolucionário e é eleito o seu secretário-geral, em 1968. Em 1970, aos 58 anos, é preso, resiste à prisão e às torturas, impondo o respeito nos porões da repressão. Meses depois, juntamente com um grupo de presos políticos, é trocado pelo embaixador alemão seqüestrado por uma organização revolucionária, seguindo num vôo para a Argélia e se transferindo para a França. Na volta ao exílio, Apolônio se incorpora á formação do Partido dos Trabalhadores e é eleito seu vice-presidente. Em 1985, por recomendação médica, afasta-se da direção do PT.
É seguindo essa trajetória que se desenrola a narrativa de Apolônio de Carvalho, num texto em que a reafirmação do antigo sonho socialista não se fecha ao espírito crítico sobre as posições políticas de partidos e tendências da esquerda, nem às suas próprias posturas individuais, diversas vezes classificadas como marcadas pelo dogmatismo e a confiança cega nas instâncias partidárias superiores.
O Vale a Pena Sonhar sugere vários roteiros. Um deles é o da história de amor entre Apolônio e Rennée, sua companheira, pertencente a uma família de comunistas franceses, atuante na juventude comunista e na resistência ao nazi-fascismo. Eles se conheceram dm 1942, connstruiram um amor nas trincheiras, firmaram-se como casal, tiveram o primeiro filho durante a segunda guerra mundial e escreveram uma história de conciliação entre a luta popular e o leito copular.
As memórias de Apolônio de Crvalho, hoje com 85 anos, passam uma atmosfera de objetividade e viço que constitue uma difícil linha divisória entre o tom bombástico e apologético das “testemunhas de Jeová” da política e a cantilena sado-masoquista dos socialistas ou ex-socialistas globalizados e desencantados.
Publicado no Diário de Pernambuco, Recife, em 1997. Matéria de divulgação do lançamento do Vale a Pena Sonhar no Recife, a quem me coube a tarefa da assessoria de imprensa, a divulgação e a coordenação da mesa no dia da festa.
É seguindo essa trajetória que se desenrola a narrativa de Apolônio de Carvalho, num texto em que a reafirmação do antigo sonho socialista não se fecha ao espírito crítico sobre as posições políticas de partidos e tendências da esquerda, nem às suas próprias posturas individuais, diversas vezes classificadas como marcadas pelo dogmatismo e a confiança cega nas instâncias partidárias superiores.
O Vale a Pena Sonhar sugere vários roteiros. Um deles é o da história de amor entre Apolônio e Rennée, sua companheira, pertencente a uma família de comunistas franceses, atuante na juventude comunista e na resistência ao nazi-fascismo. Eles se conheceram dm 1942, connstruiram um amor nas trincheiras, firmaram-se como casal, tiveram o primeiro filho durante a segunda guerra mundial e escreveram uma história de conciliação entre a luta popular e o leito copular.
As memórias de Apolônio de Crvalho, hoje com 85 anos, passam uma atmosfera de objetividade e viço que constitue uma difícil linha divisória entre o tom bombástico e apologético das “testemunhas de Jeová” da política e a cantilena sado-masoquista dos socialistas ou ex-socialistas globalizados e desencantados.
Publicado no Diário de Pernambuco, Recife, em 1997. Matéria de divulgação do lançamento do Vale a Pena Sonhar no Recife, a quem me coube a tarefa da assessoria de imprensa, a divulgação e a coordenação da mesa no dia da festa.
Resistir
Newton Leão Duarte
- Cabo da guarda! Cabo da guarda! Cabo da guarda!
O grito de alarme do esbirro de plantão alertou-me para algo diferente acontecendo no prédio do Pelotão de Investigações Criminais – PIC, do 1o Batalhão de Polícia do Exército – PE, na Barão de Mesquita.
Fui preso no dia 20 de julho de 1969, mesmo dia em que o homem pisou pela primeira vez na lua. Hoje percebo que foram duas experiências extraterrestres: os americanos desembarcando em solo lunar e eu adentrando os domínios da sede da repressão na PE.
Quis o destino, ou talvez os meandros por onde se perdeu meu IPM, que minha permanência ali se prolongasse por cerca de intermináveis sete meses. Ao longo deste tempo, presenciei e experimentei na pele a evolução técnica e operacional do aparato repressivo naquela unidade do Exército Brasileiro, desde o PIC, que atuava em parceria com o DOPS, ao poderoso DOI-CODI.
Ler mais ...
Ao final de 69, início de 70, o elevado número de pessoas presas na PE excedia os espaços disponíveis para o encarceramento, obrigando a que os detidos fossem alojados em corredores e escadas. A pressa dos agentes em obter informações e confissões, por sua vez, tornava insuficientes as salas reservadas para interrogatórios e torturas, que passaram a ser praticadas em qualquer espaço disponível, inclusive nas ante-salas das celas onde se encontravam detidos os presos mais antigos.
Naquele dia, eu, já considerado o decano dos presos da PE, encontrava-me lendo no beliche, quando um agente olhou pela vigia da porta de minha cela gritando:
- Aí, seu piroca, fica deitado aí, senão tu vai entrar no pau também!
Esta era a senha para eu saber que iria ter início nova sessão de torturas na ante-sala em frente. Após os ruídos característicos da chegada de um grupo de pessoas, ouvi a ordem clássica, dada aos gritos:
- Tire a roupa rápido, seu filho da puta!
Considerando que não foi cumprida de imediato, repetiram-na diversas vezes, sem sucesso, o que levou o “supervisor” a mandar arrancá-la à força.
Assustei-me com o estrondo provocado pelo impacto violento de um corpo contra a porta de minha cela. Gritos, ruído de luta corporal, perda de controle da situação por parte dos inquisidores, desespero do tenente gritando:
- Cabo da guarda! Cabo da guarda! Cabo da guarda!
Quedei-me surpreso e admirado! Alguém estava enfrentado fisicamente os torturadores, com tal eficácia que foi preciso chamar reforços. Era a primeira vez que presenciava uma atitude dessas.
Com a chegada dos reforços, o recalcitrante, que insistia em não se submeter ao capricho dos carrascos, foi dominado e fez-se silêncio. Como de praxe, desobedeci às ordens recebidas e arrastei-me cuidadosamente pelo chão até as frestas existentes entre as tábuas da porta, através das quais era possível enxergar o cenário do conflito.
Vi um homem de meia idade, deitado com a barriga para baixo, as mãos e pés amarrados às costas, o corpo marcado pelos sinais da luta, maltrapilho, porém, vitorioso porque vestido!
Não tenho hoje uma noção clara do tempo que durou o interrogatório de meu herói. Tenho certeza, porém, de que permaneceu imobilizado naquela posição durante dias, pois fiquei impedido de sair de minha cela para as refeições que fazia no rancho dos soldados e os agentes não tinham coragem de soltá-lo.
Outros fatos também jamais se apagaram de minha mente: o ruído do magneto de telefone de campanha que era usado para aplicar choques elétricos em seu corpo, contrastando com o absoluto silêncio do interrogado que se recusava a gemer ou gritar de dor; o cheiro forte dos produtos químicos que lhe foram injetados na tentativa inútil de fazê-lo dar informações; a serenidade, firmeza e segurança com que se dirigia aos inquisidores, demolindo seus argumentos e certezas, frustrando suas estratégias.
Alguns diálogos que ouvi tornaram-se inesquecíveis. A um jovem oficial que se jactava de ser um militar, “profissional de guerra”, desmoralizou junto a seus comandados com uma pergunta simples: “em que guerras você lutou para considerar-se um profissional?” Durante o interrogatório ouvi-o repetir diversas vezes, em alto e bom som: “nada posso dizer porque combinamos não falar”.
Com o fim de seu suplício pude finalmente voltar a circular até o rancho. O que vi na ante-sala foi um homem sentado sobre um velho colchão: altivo, com um olhar forte, sereno e confiante. Logo depois, teve início a romaria de oficiais superiores querendo conhecer quem era Apolonio de Carvalho.
Somente tempos depois vim saber quem era aquele que tanta importância teve na reconstrução do espírito revolucionário deste então jovem e deprimido prisioneiro. Apolônio não me ensinou apenas que era preciso resistir. Ensinou-me muito mais. Ensinou-me que era possível resistir.
Extraído do livro: 68 a geração que queria mudar o mundo: relatos - organizado por Eliete Ferrer e publicado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, 2011, página 466.
Naquele dia, eu, já considerado o decano dos presos da PE, encontrava-me lendo no beliche, quando um agente olhou pela vigia da porta de minha cela gritando:
- Aí, seu piroca, fica deitado aí, senão tu vai entrar no pau também!
Esta era a senha para eu saber que iria ter início nova sessão de torturas na ante-sala em frente. Após os ruídos característicos da chegada de um grupo de pessoas, ouvi a ordem clássica, dada aos gritos:
- Tire a roupa rápido, seu filho da puta!
Considerando que não foi cumprida de imediato, repetiram-na diversas vezes, sem sucesso, o que levou o “supervisor” a mandar arrancá-la à força.
Assustei-me com o estrondo provocado pelo impacto violento de um corpo contra a porta de minha cela. Gritos, ruído de luta corporal, perda de controle da situação por parte dos inquisidores, desespero do tenente gritando:
- Cabo da guarda! Cabo da guarda! Cabo da guarda!
Quedei-me surpreso e admirado! Alguém estava enfrentado fisicamente os torturadores, com tal eficácia que foi preciso chamar reforços. Era a primeira vez que presenciava uma atitude dessas.
Com a chegada dos reforços, o recalcitrante, que insistia em não se submeter ao capricho dos carrascos, foi dominado e fez-se silêncio. Como de praxe, desobedeci às ordens recebidas e arrastei-me cuidadosamente pelo chão até as frestas existentes entre as tábuas da porta, através das quais era possível enxergar o cenário do conflito.
Vi um homem de meia idade, deitado com a barriga para baixo, as mãos e pés amarrados às costas, o corpo marcado pelos sinais da luta, maltrapilho, porém, vitorioso porque vestido!
Não tenho hoje uma noção clara do tempo que durou o interrogatório de meu herói. Tenho certeza, porém, de que permaneceu imobilizado naquela posição durante dias, pois fiquei impedido de sair de minha cela para as refeições que fazia no rancho dos soldados e os agentes não tinham coragem de soltá-lo.
Outros fatos também jamais se apagaram de minha mente: o ruído do magneto de telefone de campanha que era usado para aplicar choques elétricos em seu corpo, contrastando com o absoluto silêncio do interrogado que se recusava a gemer ou gritar de dor; o cheiro forte dos produtos químicos que lhe foram injetados na tentativa inútil de fazê-lo dar informações; a serenidade, firmeza e segurança com que se dirigia aos inquisidores, demolindo seus argumentos e certezas, frustrando suas estratégias.
Alguns diálogos que ouvi tornaram-se inesquecíveis. A um jovem oficial que se jactava de ser um militar, “profissional de guerra”, desmoralizou junto a seus comandados com uma pergunta simples: “em que guerras você lutou para considerar-se um profissional?” Durante o interrogatório ouvi-o repetir diversas vezes, em alto e bom som: “nada posso dizer porque combinamos não falar”.
Com o fim de seu suplício pude finalmente voltar a circular até o rancho. O que vi na ante-sala foi um homem sentado sobre um velho colchão: altivo, com um olhar forte, sereno e confiante. Logo depois, teve início a romaria de oficiais superiores querendo conhecer quem era Apolonio de Carvalho.
Somente tempos depois vim saber quem era aquele que tanta importância teve na reconstrução do espírito revolucionário deste então jovem e deprimido prisioneiro. Apolônio não me ensinou apenas que era preciso resistir. Ensinou-me muito mais. Ensinou-me que era possível resistir.
Extraído do livro: 68 a geração que queria mudar o mundo: relatos - organizado por Eliete Ferrer e publicado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, 2011, página 466.
Encontro com Apolonio
Umberto Trigueiros
Conheci Apolonio de Carvalho, aliás, o Camarada Lima, no começo de 1964, uns dois meses antes do Golpe Militar. Fui apresentado por Aluísio Palmar (André) que compunha a direção da Seção Juvenil Estadual do Partido Comunista no antigo Estado do Rio. Tinha apenas dezesseis anos e tive a honra e o orgulho, que carrego comigo por toda a minha vida, de ter sido recrutado por ambos para o Partido Comunista.
Não sabia, na época, de quem se tratava, na verdade, aquele Senhor, o Camarada Lima. Somente anos mais tarde, fui conhecer a sua extraordinária biografia. Mas, já nos primeiros tempos em que travamos conhecimento, fiquei cativado pela sua capacidade de convencimento, pelo seu conhecimento cultural e político, pela sua dedicação ao Partido, aliados a um enorme interesse pelos problemas daqueles garotos, uma grande ternura, muita paciência e uma enorme disciplina. Eu era, então, um rapazinho de dezesseis anos, cheio de sonhos e certezas, mas, ao mesmo tempo, com graves problemas de depressão. Lima percebeu isso e teve a sensibilidade, apesar de todas as suas responsabilidades e riscos (já em plena ditadura), de se preocupar comigo e me ajudar a superar esses problemas.
Ler mais ...
Ele era assim: um quadro extremamente disciplinado e fiel ao Partido, mas muito aberto ao relacionamento humano; extremamente sensível aos problemas de todos os companheiros, dos simpatizantes e das pessoas, em geral, que por alguma razão faziam parte das suas relações. Além do mais, era dotado de um fantástico senso de humor. A gente brincava com o Lima, dizendo que ele cumpria tarefa do Partido, fazendo política de relações públicas, o que chamávamos, na ocasião, de ampliação, pois ele se interessava pelo cachorro do dono da casa em que fazíamos uma reunião, perguntava pela sogra, conversava com a empregada, dava palpite na cozinha, etc.
Certa vez, era noitinha, estávamos Lima, Aluísio Palmar e eu, em Niterói, fazendo um ponto (encontro) em frente ao Instituto Mazine Bueno, da Faculdade de Medicina. Eles queriam me batizar com um nome de guerra e mandaram-me escolher. Eu estava de costas para o busto do patrono do tal instituto e o Aluísio de frente para o monumento. Ele aproveitou a oportunidade e tascou: “seu nome vai ser Mazine”. Lima completou, no ato, que se tratava do nome de um grande revolucionário. Saí dali todo orgulhoso e só tempos depois vim saber da verdade. Quando fui cobrar do Lima, ele já tinha para me apresentar a biografia completa de Mazine, um grande líder e ativista dos carbonários italianos. Só pra não deixar passar, poucos anos mais tarde, o busto do tal Mazine Bueno foi expropriado e derretido para fazer finanças para a organização (o antigo MR-8 de Niterói).
Nunca vou-me esquecer de uma frase sua para me inculcar ânimo, otimismo, autoconfiança, certa vez em que em cobríamos um ponto e eu andava muito deprimido e triste.
- Rapaz, você é um jovem cheio de energia e sonhos e agora tem uma responsabilidade muito maior com a vida, com a história, você é o Partido, o Partido anda com os seus pés, você fala pelo Partido.
Saí dali com o moral lá em cima, disposto a tudo, a qualquer desafio. Ele estava sempre aberto para debater qualquer coisa, fossem posições políticas, um romance, o capítulo de um livro, temas filosóficos, culturais, pessoais.
Na época da luta interna do Partido, às vésperas do VI Congresso, Apolonio estava no Comitê Estadual do Estado do Rio e integrava um das alas da oposição de esquerda, a chamada Corrente, junto com Mário Alves, Gorender e outros dirigentes. Eles achavam que ainda havia espaço para brigar dentro do Partido. Por outro lado, a juventude do Partido em Niterói estava ligada ao grupo chamado Dissidência, preparava-se para romper e, logo depois, iniciar o caminho da luta armada. Recordo-me das discussões muito duras que tivemos com Lima. Ele ainda defendia a permanência no Partido e ficou muito triste e chocado com a nossa saída. Lembro-me dele, quando aconselhava:
- Sair do Partido? Não façam isso! O Partido é a nossa vida, não há perspectiva fora do Partido...
Pouco tempo depois, a própria Corrente saía do Partido, de forma mais organizada que nós, e criava o PCBR. Mais tarde, vieram a clandestinidade, a prisão, o exílio e passei um longo tempo sem ver Apolonio. Fomos rever-nos, novamente, em Paris. Ele foi encontrar-me junto com o René Louis, seu filho, que tinha sido banido junto comigo para o Chile, em Saint Denis, na casa do Átila – o inesquecível companheiro Valneri Antunes, morto em um trágico acidente de carro no Rio Grande do Sul, em 1986, quando era vereador em Porto Alegre e candidato a deputado estadual. Foi maravilhoso aquele encontro, na França. Alguns dias depois, convidou-me junto com minha companheira para um passeio no Sena e, em seguida, para um Calvados, em um “boteco” bem francês.
Em 1979, nos encontramos no Congresso Internacional pela Anistia no Brasil, em Roma. Consegui tirar uma foto dele quando conversava com Diógenes de Arruda Câmara e José Maria Crispim, um registro histórico que guardo comigo.
No Brasil, estive com Apolônio algumas vezes apenas, não tantas como gostaria. Mas ele faz parte do melhor dos meus sonhos, da minha vida. Ele faz parte da história da luta do povo brasileiro por sua verdadeira independência e pelo socialismo. Ele é um herói dessa luta.
Extraído do livro: 68 a geração que queria mudar o mundo: relatos - organizado por Eliete Ferrer e publicado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, 2011, página 292.
Certa vez, era noitinha, estávamos Lima, Aluísio Palmar e eu, em Niterói, fazendo um ponto (encontro) em frente ao Instituto Mazine Bueno, da Faculdade de Medicina. Eles queriam me batizar com um nome de guerra e mandaram-me escolher. Eu estava de costas para o busto do patrono do tal instituto e o Aluísio de frente para o monumento. Ele aproveitou a oportunidade e tascou: “seu nome vai ser Mazine”. Lima completou, no ato, que se tratava do nome de um grande revolucionário. Saí dali todo orgulhoso e só tempos depois vim saber da verdade. Quando fui cobrar do Lima, ele já tinha para me apresentar a biografia completa de Mazine, um grande líder e ativista dos carbonários italianos. Só pra não deixar passar, poucos anos mais tarde, o busto do tal Mazine Bueno foi expropriado e derretido para fazer finanças para a organização (o antigo MR-8 de Niterói).
Nunca vou-me esquecer de uma frase sua para me inculcar ânimo, otimismo, autoconfiança, certa vez em que em cobríamos um ponto e eu andava muito deprimido e triste.
- Rapaz, você é um jovem cheio de energia e sonhos e agora tem uma responsabilidade muito maior com a vida, com a história, você é o Partido, o Partido anda com os seus pés, você fala pelo Partido.
Saí dali com o moral lá em cima, disposto a tudo, a qualquer desafio. Ele estava sempre aberto para debater qualquer coisa, fossem posições políticas, um romance, o capítulo de um livro, temas filosóficos, culturais, pessoais.
Na época da luta interna do Partido, às vésperas do VI Congresso, Apolonio estava no Comitê Estadual do Estado do Rio e integrava um das alas da oposição de esquerda, a chamada Corrente, junto com Mário Alves, Gorender e outros dirigentes. Eles achavam que ainda havia espaço para brigar dentro do Partido. Por outro lado, a juventude do Partido em Niterói estava ligada ao grupo chamado Dissidência, preparava-se para romper e, logo depois, iniciar o caminho da luta armada. Recordo-me das discussões muito duras que tivemos com Lima. Ele ainda defendia a permanência no Partido e ficou muito triste e chocado com a nossa saída. Lembro-me dele, quando aconselhava:
- Sair do Partido? Não façam isso! O Partido é a nossa vida, não há perspectiva fora do Partido...
Pouco tempo depois, a própria Corrente saía do Partido, de forma mais organizada que nós, e criava o PCBR. Mais tarde, vieram a clandestinidade, a prisão, o exílio e passei um longo tempo sem ver Apolonio. Fomos rever-nos, novamente, em Paris. Ele foi encontrar-me junto com o René Louis, seu filho, que tinha sido banido junto comigo para o Chile, em Saint Denis, na casa do Átila – o inesquecível companheiro Valneri Antunes, morto em um trágico acidente de carro no Rio Grande do Sul, em 1986, quando era vereador em Porto Alegre e candidato a deputado estadual. Foi maravilhoso aquele encontro, na França. Alguns dias depois, convidou-me junto com minha companheira para um passeio no Sena e, em seguida, para um Calvados, em um “boteco” bem francês.
Em 1979, nos encontramos no Congresso Internacional pela Anistia no Brasil, em Roma. Consegui tirar uma foto dele quando conversava com Diógenes de Arruda Câmara e José Maria Crispim, um registro histórico que guardo comigo.
No Brasil, estive com Apolônio algumas vezes apenas, não tantas como gostaria. Mas ele faz parte do melhor dos meus sonhos, da minha vida. Ele faz parte da história da luta do povo brasileiro por sua verdadeira independência e pelo socialismo. Ele é um herói dessa luta.
Extraído do livro: 68 a geração que queria mudar o mundo: relatos - organizado por Eliete Ferrer e publicado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, 2011, página 292.
O blog está lindíssimo, muito emocionante!!!
ResponderExcluirEu diria mesmo, digno do homenageado.
vale a pena sonhar!
Lilian Ulup