Li com muita emoção e lágrimas o pungente depoimento de Renée, em Uma vida de lutas, que considero um dos mais preciosos livros que li em meus setenta anos de vida.
É importante ressaltar que, enquanto pesquisadora social, pude apreciar o livro como um rico testemunho de um período histórico fundamental para a história brasileira e internacional. Os testemunhos da autora tornaram esse período de nossa história cheio de vida, transmitindo-nos dados que servirão de base para posteriores estudos e análises.
No entanto, esse livro tem para mim um valor pessoal e humano que vai muito além de seu valor científico e histórico, e é sobre isso que gostaria de tecer alguns comentários.
Em minha juventude, meu universo imaginário foi povoado pelos relatos da guerra de Espanha, da Resistência francesa e do Front Populaire, forjando os alicerces de minha formação política. No entanto, apesar de ter lido muitos livros a respeito e ter também visto vários filmes narrando esses episódios, eles permaneciam atrelados ao imóvel mundo das ideias.
Renée conseguiu dar uma vida de carne e osso a esse universo. Compreendi como nunca as razões, o sentido, a coragem e as fraquezas próprias de um combate que era político, porém se inseria nos limites e grandezas da condição humana. Os comentários de Renée sobre Thorez e os que aderiram à resistência depois da vitória, por exemplo, ilustram muito bem por que essas pessoas não conseguiam inspirar meu coração nem tocar mais profundamente aqueles que participavam da luta social.
Seu relato da vinda ao Brasil, permitiu-me rever e apreciar não apenas as lideranças do PCB que me foram mais caras (como Mario Alves, Marighella, Giocondo Dias ou Malina), mas também o tipo de prática partidária que acabou me revelando ser impossível chegar a uma sociedade mais justa, humana e igualitária aplicando o tipo de procedimento que predominava na vida do PCB e de outros partidos semelhantes.
Como Renée, sempre reconheci o esforço e o valor da luta desses combatentes pelo socialismo, apesar de todos os erros por eles (e por mim) cometidos, e por isso fui me afastando de suas propostas, em silêncio, buscando respostas às minhas aspirações de um mundo melhor e mais humano em outros caminhos. Partilho com Renée o amor pela França e pelo Brasil, assim como as críticas aos defeitos desses dois países que ela tão bem descreve, a dificuldade do exílio em terra estrangeira e os problemas do retorno ao Brasil.
Já, em agosto de 1961, Nelson Werneck Sodré havia passado para a reserva em protesto contra o desmantelamento das chefias militares nacionalistas ao qual Jango Goulart se dobrou. Esse desmantelamento abriu caminho para a hegemonia das forças militares de direita e a vitória do golpe de 1964. Nessa época, embora nossa família tenha sofrido as consequências das perseguições e da derrota política, não fui, portanto, pega completamente de surpresa como aqueles que foram iludidos pelas falsas ilusões de uma força político-militar que não mais existia.
Sofremos, sem dúvida, duras perdas e golpes terríveis, como os absurdos sofrimentos infringidos a tantos militantes narrados por Renée em relação aos seus familiares e companheiros, porém conseguimos emergir dessa situação e a duras penas fomos aprofundando a consciência dos limites das experiências partidárias e das experiências históricas de construção do socialismo, sem nunca negar completamente o valor dessas experiências nem abandonar o ideal de uma nova sociedade e de uma transformação do ser humano. E é isso o mais importante, pois podemos agora partilhar a alegria de uma vida, como a de Renée, Apolônio e seus familiares, que valeu a pena ser vivida.
Para mim, a dedicação amorosa que pessoas como eles deram a essas lutas e suas tentativas de renovação humana são tão importantes como os sucessos conseguidos: elas são como o fermento que prepara a massa ou o adubo que prepara a terra, e que permitirão, no momento oportuno, fazer germinar e crescer uma nova forma de vida.
Por Olga Sodré
Da Fundação Perseu Abramo
0 comentários:
Postar um comentário